Aquela sandália

Estava no supermercado, num dia absolutamente banal.

Sandálias gastas, cabelo apanhado à pressa, lista de compras dobrada no bolso. Uma mulher de 55, invisível — como as promoções esquecidas no corredor dos enlatados.

Até que a sandália cedeu.

A tira, velha e rendida como tantas partes de mim, soltou-se num estalo quase irónico.

Abaixei-me, contrariada. O vestido subiu, sem pedir licença.

Quando levantei os olhos, ele já estava ali.

O rapaz do talho. Trinta e poucos. Cara calma. Braços largos. Mãos que pareciam saber o peso da carne crua… e talvez o das intenções.

O olhar pousado nos meus pés.

Depois, a viagem.

Calcanhares. Tornozelos. O desenho suave das pernas. A dobra onde o vestido descansava.

Até aos olhos.

Ficou ali.

E disse:

“Essa cor… combina com o seu andar.”

Não respondi. Nem precisei.

Não sorri. Mas ardi.

Empurrei o carrinho. Devagar. Como quem dança sozinha.

À noite, ao arrumar os sapatos, deixei aquela sandália de lado. Não a deitei fora. Não ainda.

Coloquei-a à vista. Ali, ao lado da porta.

Porque às vezes… é no que se parte que começa o que se sente.

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